No que diz respeito a leitura sobre o Sport Lisboa e Benfica, sou um leitor exigente. Não me contento com qualquer malheirice, quando folheio algum livro sobre o SL Benfica com potencial para me interessar – à primeira vista, qualquer um – gosto de o fazer sem a sensação que eu conseguiria fazer melhor (sensação essa que adquiri, exageradamente e sem fundamento, ao longo do tempo). O livro de Ricardo Serrado, Cosme Damião – O Homem Que Sonhou O Benfica, foi um dos que me cativou a atenção e obteve o prémio da compra.
Ricardo Serrado é um historiador dedicado ao futebol. Tem tentado desmistificar e dar a conhecer a história do futebol português, segundo o próprio, com “crédito, rigor e conteúdo”, abstraindo-se de exaltações clubísticas. Já conhecia outro livro seu, de alto valor para a história do futebol português, do qual falarei noutra altura. Reconheço-lhe mérito no trabalho de investigação, que tal como o autor diz, criticando outros, deve conferir “credibilidade” e “honestidade intelectual”. No entanto…
O livro tem erros, começo, então, por apontar os que encontrei e seriam facilmente detectáveis numa revisão editorial.
É referido no livro que José Rosa Rodrigues, o primeiro presidente do Sport Lisboa, foi um dos dissidentes para o Sporting em 1907, isso não é um facto, dois dos dissidentes foram sim os seus irmãos António e Cândido. Talvez venha daí a confusão, que não deveria ter seguido para edição impressa e comercializada. Este erro ajuda a criar mitos e significados que o autor pretende fazer cair com o seu trabalho.
Ricardo Serrado refere-se ao Benfica, quando escreve sobre o primeiro dérbi entre o Sport Lisboa e o Sporting CP, deve referir exclusivamente o Sport Lisboa, clube que disputou esse jogo, e nunca como “o Benfica”.
O autor refere o “primeiro campeonato terminado pelo Sporting” quando fala do primeiro campeonato disputado pelo Sporting. Está a fazer referência ao facto do Sporting CP, constantemente, desistir do Campeonato Regional, mas isso acontece nos campeonatos seguintes. O primeiro terminado coincide com o primeiro disputado. No meu entender, o autor deveria aludir a esse facto, apenas, mais à frente.
Estou quase certo que há um engano quando um jogador do Fortuna de Vigo é referido como andaluz em vez de galego.
O clube designado como Third Larnack era o Third Lanark, o Earling é o Ealing, que ao contrário do referido no livro não era a equipa vencedora da FA Amateur Cup.
Quanto ao conteúdo propriamente dito, o livro começa por relatar a forma como a Casa Pia influenciou o carácter de Cosme Damião e como a instituição foi a base para a fundação do que é hoje o Sport Lisboa e Benfica. Não é apenas a história de Cosme Damião que é descrita mas também, indissociavelmente, a génese e parte da história do Sport Lisboa e Benfica, das suas estruturas e do seu ambiente social. Referem-se as dificuldades vividas durante as primeiras décadas da vida do clube, como isso influenciou a sua popularidade, e como Cosme Damião foi influenciador dos seus valores. Desde os tempos em que não era figura de proa, passando pelo aproveitamento da dissidência para o Sporting CP para se impor, até ao momento em que Cosme Damião “era o Benfica” e o seu final no Benfica. Através das suas acções e das suas obras descortinamos o carácter de Cosme Damião.
A leitura permite-nos perceber como Cosme Damião foi determinante na sobrevivência do Sport Lisboa após a dissidência de 8 jogadores da equipa de 1ª categoria para o Sporting. Como, foi importante na negociação de terrenos e construção do estádio de Sete Rios e, mais tarde, do das Amoreiras, apelando também à contribuição popular, que ajuda com jogadores, sócios e dirigentes nos trabalhos de construção do estádio. Momentos em que o povo criou ligações com o clube, porque vê crescer algo seu e sente mais próximo o engrandecimento do clube. Estas dificuldades criam uma ligação popular ao clube – pois, viscondes não precisam de construir com as próprias mãos – e mais fácil de transmitir de pai para filho. Estava formado um clube onde as pessoas não se importam de tomar banho de água fria, de jogar à chuva e de trabalhar ao domingo para o colectivo.
A saída de Cosme Damião do seu SL Benfica ajuda a definir o seu percurso até aí. Em 1926, surgiu uma lista concorrente à sua nas eleições do clube, lista essa que o convidou a ser presidente caso fosse eleita – cargo que nunca quis ocupar no SL Benfica –, apesar de divergirem quanto à orientação que o clube devia seguir. Para Cosme Damião era um acérrimo defensor do amadorismo, num momento em que o clube já se ressentia dessa prática, não concebia a ideia de pagar a alguém para jogar no SL Benfica; dizia mesmo “Não há jogadores que queiram jogar por amor ao clube?” Perdeu as eleições e recusou integrar a lista rival, retirou-se. Teve muitos convites para regressar, apenas aceitou ser presidente da Mesa da Assembleia Geral.
Durante grande parte do livro, questionei a razão de não ser abordada a vida privada de Cosme Damião, mais tarde é abordada: não tinha. Durante mais de 20 anos abdicou da sua vida privada pelo SL Benfica, sem nunca receber remuneração. Dedicou-lhe apenas tempo depois de abandonar o activismo no SL Benfica.
Foi admirado até pelos seus opositores. No capítulo em que se fala sobre a sua morte, o seu legado e o que ele criou (o Sport Lisboa e Benfica) chorei baba e ranho.
No último capítulo, sobre a mística benfiquista, o autor alonga-se demasiado falando de Sporting CP e FC Porto. Se vejo méritos ao capítulo, por situar Cosme Damião na origem da mística, não vejo necessidade de se explorar tanto temas que não lhe dizem respeito. Creio que o autor teria matéria para escrever outro livro e não deveria ter sido explorada neste.
Concluo dizendo que, apesar de por vezes repetitivo, é um bom livro e aborda uma parte importante da história de Portugal. Devia ser leitura escolar entre o 5º e 6º anos.
Leitura OBRIGATÓRIA para os benfiquistas.